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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Pessoas Especiais que Tornam a Vida Especial

Algumas pessoas tem o dom de transformar a vida por onde passam. Em ações simples, sempre com amor e bondade no coração, parecem encher de luz o lugar onde estão e as pessoas que tem a sorte de conviver com elas. Nenhum pessimismo, tristeza ou melancolia resistem à passagem dessas pessoas. Uma dessas pessoas especiais me enviou um email comentando suas impressões sobre o blog. De tão especial, vi que suas palavras não mereciam ficar apenas para nós dois. Afinal, quem leu o primeiro post do blog, sabe que ele nasceu como uma forma de dividir com o mundo meus pensamentos, porque aqui dentro eles não causam efeito nenhum em ninguém. Postos pra fora, podem fazer alguma diferença. Espero que este espírito também contagie meu primo Tarlei, o autor do email. Afinal, quem é que não gostaria de ler sempre palavras tão sabiamente agrupadas?

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Magno,
 
Tudo bem?
 
Aviso de cara que essa mensagem poderá ser longa, muito longa... Ou não... Há sempre abismos insondáveis entre intenção e gesto.
 
Aproveitando as delícias do ócio mais absoluto (estou de férias), li o seu blog. Na primeira olhada que dei nele, logo quando foi inaugurado, pressenti o cheiro de coisa boa, madura, refletida, cozinhada com calma... Muito bom! E há nele um tom propedêutico (desculpe!) que me agrada muito... Gosto muito da espessa humanidade que você esparge nos seus escritos... Isso não é novidade vindo de quem vem: um coração generoso, uma alma acolhedora, um olhar atento para os desvãos de todos nós... Pra dizer como o Martinho da Vila: "tá delícia, tá gostoso!". Parabéns!
 
Gostei de todos os posts mas fiquei especialmente tocado por dois deles. Aquele em que você comenta o filme "A estrada" e o post do Pablo. Lendo sobre o Pablo, me lembrei de imediato de um texto da jornalista Eliane Brum que abre o livro (premiado) "A vida que ninguém vê". O texto fala justamente de acolhimento e de uma maneira que me faz chorar todas as vezes que o leio. Achei que você devia ler esse texto e resolvi copiá-lo pra você (veja mais abaixo, logo após o final do email). Não consegui conter as lágrimas nem mesmo no processo de digitação. Espero que goste. 
 
O post sobre religião também me chamou a atenção. E me fez lembrar de um comentário atribuído ao grande Bertrand Russel, autor, entre outros, de um livro chamado "Ensaios céticos". Diante da hipótese de que a existência de Deus fosse um dia provada, como reagiria Russel, um notório cético? A resposta dele teria sido: "Ele não nos deu provas suficientes". Provas lógicas, que fique claro!! Russel era filósofo, lógico, matemático e grande admirador de Wittgenstein, a quem não hesitou chamar de gênio. Saramago também era agnóstico. Por acaso estou lendo, de forma intermitente, como é do meu feitio, "As palavras de Saramago", recolha de declarações feitas à imprensa. Lá está dito a certa altura: "Seria mais cômodo acreditar em Deus, mas escolhi o lugar da incomodidade". Ele fala especialmente da bondade. Diz que  se tivesse de haver uma religião, a única em que acreditaria é a da bondade. Tentei localizar as exatas palavras dele, mas não consegui. Minhas palavras pecam pela imprecisão e incompletude. 
 
Ainda não me animei a mexer no meu blog. Agora o problema é o seguinte: estou com preguiça de selecionar material escrito, editar, rever, aparar, buscar imagens para enfeitar cada post... Talvez semana que vem... Talvez nunca... Você comenta sobre a inconstância de suas postagens e calhou de eu ler um texto do Rafael Rodrigues que fala disso. O texto de certo modo confirma a postura que você resolveu adotar: a de não ter pressa de postar. Segue o link do texto.

(...)
Abraços,
Tarlei
 
 
A história de um olhar
(Eliane Brum)

O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.
Inclui.
Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva.
Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.
Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, kephas significa pedra. Por isso um nome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma de década atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão. Eram operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje, desempregados da indústria. Biscateiros, papeleiros. Excluídos.
Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado. Há sempre alguém para ser chutado por expressar a imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.
Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das ideias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória.
Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.
Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espirando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lava a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel.
Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu a ruas de pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar vaga oficial na escola. Já consegue escrever o “P” de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra.

3 comentários:

Anônimo disse...

Filho, querido!
Ouço falar da geniosidade do Tarlei desde meus doze anos, isto é, mesma idade que ele -Tarlei- tinha. Eu trabalhava como babá, na casa da professora de Língua Portuguesa dele. Sempre que alguma outra professora ia visitá-la ela falava desse aluno que fazia a diferença dentre todos os demais. Tais comentários variavam: falava-se de melhor nota, melhor texto, melhor aluno... até a premissa maior: eu ainda vou ouvir falar desse gênio. Nessa época,filho, eu nem pensava em casar e ter um filho que iria cobrar do Tarlei(pessoa mais que especial), algo que enriqueceria o conteúdo de muitos leitores - simples mortais -com o conhecimento e a sabedoria de uma pessoa que se emociona com um texto de alguém que valoriza e respeita o ser humano. Faz logo esse blog Tarlei. Compartilhe conosco tudo de bom, que egoisticamente, guardaste contigo!
Um beijo no coração.
Mãezinha!

Anônimo disse...

Errata: lê-se genialidade em lugar de geniosidade.
Filho, no comentário que fiz sobre o Tarlei, equivocadamente, escrevi geniosidade em lugar de genialidade. Imperdoável! Apesar de ambas derivar da palavra "gênio" o significado daquela não cabe no contexto.
Mãezinha

Tarlei disse...

Magno,
Contrariando minha natureza recolhida, venho fazer, de público, o que já fiz em particular: agradecê-lo pela disposição de compartilhar um e-mail que só teve o propósito de compartilhar minhas modestas impressões de leitura. Aproveito, também, para repetir, de público, o que já disse em particular: não sou especial. "Sou um homem comum / enganando entre a dor e o prazer / (...) Hei de viver e morrer e como um homem comum (...)" (Caetano). Sou um homem comum que tem um vício explícito: gostar de gente. Muito. E "gente é pra brilhar" (Caetano, de novo).
Preciso, ainda, agradecer o comentário mais que generoso que sua mãe fez sobre mim. Só não pude concordar com a substituição de "geniosidade" por "genialidade". A palavra "gênio" só cabe na minha vida com o sentido de genioso -- não nasci taurino por acaso. Sua mãe e você, Magno, jogam no time daquela gente que faz diferença. Muito obrigado aos dois!
Abraço,
Tarlei